Para entender a indústria de jogos gaúcha é preciso compreender o contexto maior do Brasil em um primeiro momento. Ao passo que a informática ganhou escritórios e lares, os desenvolvedores procuravam criar conforme as possibilidades existentes. A história do lado dos jogadores é conhecida, sobretudo por quem jogou, mas as dificuldades dos programadores nem sempre foram abordadas.
Se a cultura foi moldada pela guerra entre jogos “piratas” e lançamentos oficiais, o mesmo ocorreu entre os produtores. As regras e políticas para o setor de tecnologia permitiam a fabricação de produtos nacionais similares aos estrangeiros por empresas nacionais. Marcas como Sharp e Atari ganharam versões nacionais mesmo que sem autorização das empresas detentoras dos direitos. A Lei da Reserva de Informática (Lei 7.232/84) tentou organizar o mercado, enquanto as novidades do exterior eram adaptadas.
Ao passo que o Atari foi lançado pela Polyvox em 1983, uma das empresas da Gradiente, clones eram vendidos com modificações como joysticks mais duros ou em formato de manche (CHIADO, 2013). CCE, Milmar e Dismac, entre outras, logo compreenderam que se os consoles tinham uma boa demanda, a produção de cartuchos para saciar o desejo dos jogadores também poderia seri um bom negócio.
Assim, títulos foram “localizados” de uma maneira irregular, com a adaptação de alguns nomes para cenários mais conhecidos – algo que a Phillips realizava com o Odyssey – e substituindo as marcas das empresas por outras nacionais. Estes pioneiros da engenharia reversa foram os primeiros game designers brasileiros e nunca foram reconhecidos. Não havia a cultura de valorizar o programador como em outros lugares – basta recordar de David Crane na Activision, nem mesmo a possibilidade de responsabilizar uma pessoa por uma alteração no código.
Em virtude do ato ilícito, porém amplamente adotado, não existem registros formais da forma como os jogos eram obtidos e depois modificados. Nem mesmo Chiado, um dos principais pesquisadores do tema, confirma as histórias sobre EPROMs (chips reprogramáveis) contrabandeados para consequente modificação no Brasil.
Apesar disso, no mesmo ano do lançamento oficial do Atari, um jogo brasileiro foi lançado e com importantes credenciais: era uma produção autoral e dialogava com a cultura local. Produzido por Renato Degiovani em 1983, Amazonia era uma aventura baseada em texto para microcomputadores Sinclair ZX81. Vendido em fitas cassete, já sinalizava a produção para computadores como caminho que permitia desenvolver ideias próprias. Apesar das iniciativas para consoles, este é o “marco zero” desta história.
Neste contexto, a comunicação entre criadores ocorria através de encontros de grupos, com papel interessante desempenhado pela imprensa segmentada. Se na mesma época surgiram páginas em jornais e revistas especializadas para a cobertura das “novidades tecnológicas”, publicações como MicroSistemas e MSX Micro, posteriormente, eram as Bíblias desta geração. Além dos livros, eram os veículos ideais para divulgar ideias, conhecer novidades e aprender novos programas. O código era publicado nas páginas e os leitores transcreviam depois, em um processo que necessitava de muita paciência pois era fácil errar uma linha. Além disso, neste método de aprendizado pela cópia, era possível aprender um pouco das linguagens de programação.
É interessante observar que esta foi uma das primeiras formas de lançamento de jogos, pois a revista literalmente agia como publicadora. O jogo poderia ser alterado e melhorado por outros, mas o nome do criador estava legitimado pelo veículo jornalístico.
Ainda observando os anos 80, diversas plataformas coexistiam no país além do PC, com fluxo de conhecimento ainda mais segmentado. O Brasil adotou amplamente o MSX, que reunia em um aparelho as possibilidades do computador como ferramenta de trabalho casada com jogos. O armazenamento do software era em fitas cassete ou cartucho, algo que aproximava a plataforma dos videogames. Esta mesma porta era usada para a conexão com outros periféricos, como drives de disquete 5 1⁄4”.
Lançado em 1983 no Japão, contava com algumas regras para compatibilidade entre as diversas marcas que apostaram no formato. Isto também foi visto no país em 1985, com o Hotbit da Sharp e o Expert da Gradiente. Usado até mesmo em escolas para o ensino da informática através de cartuchos com a linguagem Logo, atraiu uma geração de entusiastas. Um dos principais fatores era a possibilidade de ligar a CPU em uma TV e não em um monitor específico, além de usar um gravador de fitas cassete comum para carregar e salvar programas. Famoso também na Europa, sobretudo na Espanha, apresentou ao mundo jogos como Castlevania e Metal Gear.
Mesmo em um momento de crise econômica, com o plano Cruzado e os cortes de zeros na moeda, a possibilidade de criar com um aparelho produzido no país resultou em uma demanda de cursos, lojas e, como em diversos momentos, pequenas empresas que vendiam programas de maneira ilegal.
Entre páginas de jornais e revistas, um anúncio chamava a atenção na MSX Micro. A Discovery Informática apresentava Zorax, o primeiro jogo de ação 100% nacional. A plataforma era conhecida por shooters como Zanac, então foi natural buscar este público em 1990. A inovação estava no cenário de fundo, com camadas para indicar o movimento do astronauta que atirava em inimigos. Ele pode não ter sido o primeiro jogo nacional de fato para estes computadores, mas foi importante porque nasceu da experiência de vender aplicativos e disputou espaço nos magazines com títulos estrangeiros.
Os jogos para computadores, assim como Zorax, formavam um mercado mais interessante para os criadores porque a plataforma usada para jogar era a mesma usada para criar, bastava estudar as linguagens de programação e aplicar os conceitos de game design, sem a necessidade de equipamento especial. A venda, como observada neste caso, poderia ser realizada nas lojas que já comercializavam softwares, porém seria necessário observar logística de distribuição e realizar o diálogo com lojistas e imprensa especializada. Publishers realizam isso – além do apoio financeiro, tecnológico e com trâmites legais –, porém em uma indústria embrionária os criadores adotavam o “faça você mesmo” dos punks e também realizavam isso.
Porém a entrada dos consoles de 8-bit como Nintendo Entertainment System e Master System deslocou novamente o olhar dos jogadores para os consoles – e, por consequência, dos criadores. A TecToy lançou a plataforma da Sega com uma forte campanha de marketing, auxiliada posteriormente com títulos adaptados para o mercado nacional. Apesar do trabalho que perdurou até meados dos anos 90, os jogos de Master System não reforçavam os nomes dos criadores, mas sim da TecToy. Porém a crescente importação de produtos do Paraguai, com preços menores, prejudicou a expansão do mercado nacional.
Posteriormente, a nova geração de consoles chegou quase na mesma época do fim da reserva de informática, em 1991. Isto acentuou a competição no mercado, porém ressaltando as dificuldades das empresas nacionais para competir contra concorrentes que chegavam ao país com porte maior. O PC com MS-DOS, que adiante seria substituído pelo Windows, dominou o mercado e atraiu para si os lançamentos até mesmo de jogos.
Voltando para o universo dos consoles, a entrada do Mega Drive e Super Nintendo não só ocorreu muito por caminhos ilegais, apesar dos lançamentos oficiais no país, mas contou com poucos jogos criados no país. Além de versões de jogos como Show do Milhão para Mega Drive, uma propriedade intelectual da TV com diversas versões para Windows, a geração ficou marcada pela industrialização das versões modificadas de International Superstar Soccer para as duas plataformas. Vendidas com o nome de Campeonato Brasileiro e Ronaldinho 98, estas modificações nos jogos de futebol apresentavam times nacionais e jogadores com os nomes dos craques dos gramados, mesmo que nem sempre bem representados. Por exemplo, Romário usava uma camisa do Flamengo branca com traços verdes e tinha cabelo loiro.
Até as versões de jogos como Fifa e Pro Evolution Soccer apresentarem os nomes oficiais dos jogadores no Campeonato Brasileiro, fato que ocorreu somente no final do ciclo do PlayStation 3 e Xbox 360, diversos grupos produziam patches para atualização dos jogos, como o Bomba Patch ou Brazukas. O interesse aqui não era lucrar com isto, apesar que era preciso pagar as contas dos servidores usados para hospedar o material, mas buscar prestígio para o grupo que realizava as façanhas. Este material era replicado por vendedores piratas, em um sistema que não permitiria muita reclamação por parte dos audaciosos fãs que atualizaram os times. Além das versões nacionais, muitas delas com palavras em espanhol e traduções com problemas, versões regionais foram lançadas, como um Campeonato Gaúcho para PlayStation 1 e Campeonato Paulista para PlayStation 2. Estes consoles ganharam popularidade no país também através das vendas ilegais.
O desenvolvimento alternativo usava o mesmo expediente dos desenvolvedores de jogos para computadores, que não precisavam de devkits, aparelhos especializados para programar jogos para consoles, muito menos autorização de uma fabricante de console para homologar a criação para as plataformas. O uso de CD-ROMs foi amplamente difundido na segunda metade dos anos 90 e a troca dos disquetes pelos discos ópticos permitiu não apenas criar com mais espaço, mas produtos com uma menor taxa de erro no momento da leitura das mídias – além de não permitir apagar o material ou sobrescrever.
Ao passo que as estantes de videogames concentravam produções internacionais, as criações lançadas por empresas nacionais buscavam os computadores, com muitas empresas criando jogos educacionais ou mesmo traduzindo estes programas, como a Divertire localizando Reader Rabbit como Coelho Sabido. Produzir para os computadores driblava parte das dificuldades, porém era preciso pensar na distribuição. Uma alternativa surgiu nas antigas revistas em CD-ROM e outros magazines que usavam a venda em bancas para driblar impostos e usar as bancas e livrarias como pontos de venda.
Ainda na década, antes do temido Bug do Milênio, dois jogos nacionais receberam atenção do público. Em 1996, Gustavinho e o Enigma da Esfinge contava com a voz de Marisa Orth como Cleópatra para contar as aventuras do menino Gustavo no Egito antigo. Voltado para o público infantil, era um jogo de aventura baseado na exploração de itens colocados na tela (adventure point and click), tal qual jogos da Lucas Arts como Secret of Monkey Island e Maniac Mansion, distribuídos no Brasil pela Brasoft. O jogo ganhou uma versão para iOS em 2013.
Um pouco depois, em 1998, um curioso incidente envolvendo extraterrestres em Minas Gerais serviu como inspiração para Incidente em Varginha. O jogador precisava salvar os visitantes de outro planeta, porém nem ETs nem o Exército brasileiro estavam ao seu lado. Tal qual outros jogos de tiro em primeira pessoa (FPS), a versão em shareware foi muito distribuída e atraía o público por oferecer uma aventura em um cenário conhecido e com soldados falando em português.
O começo do novo milênio foi interessante. Ao passo que os consoles eram abastecidos pelo mercado informal, os computadores permitiam produzir para os mercados tradicionais e também para a então jovem Internet. A crescente popularização do Flash permitiu não apenas criar pequenas animações para a Internet, mas jogos simples, fato que facilitou o trabalho de profissionais do design e formou a base para o desenvolvimento de advergames. Desta forma, empresas que produziam websites e conteúdo online conseguiam produzir também jogos, abrindo um caminho que seria adotado por diversos criadores.
Além disso, as universidades passaram a oferecer graduações em game design (ou nomes correlatos). Além da experiência dos cursos da área da Informática, eventos como o Simpósio Brasileiro de Games e Entretenimento Digital (SBGames), o principal congresso sobre o tema, passaram a reunir pesquisadores e valorizar a reflexão e a produção nacional.
Com um conhecimento sólido e a Internet para publicar conteúdo e trocar informações, diversos jogos foram publicados com a usando a linguagem Flash. Amplamente utilizada na primeira década comercial da rede, permitia criar com a garantia de que o arquivo seria visualizado conforme previsto, apenas necessitando da atualização deste plugin, não um para som, outro para vídeo e outro para animações gráficas, por exemplo.
Além disso, as criações eram publicadas em websites, retendo a audiência. Isto foi interessante para fomentar a criação de advergames, jogos baseados em campanhas publicitárias. Estúdios como a Aquiris Game Studio iniciaram suas produções desta forma, evoluindo posteriormente para outras plataformas.
Posteriormente, este mesmo cenário foi transformado novamente de duas maneiras. Lançado em 2003, o Steam pouco a pouco tornou-se referência para a publicação de jogos de computador. Além de uma vitrine atualizada, seu serviço com poucas falhas e a possibilidade de instalar jogos através da rede apenas com um login único do usuário. Além de exemplo para outras redes, até mesmo de consoles, seu modelo de negócios inspirou alternativas nacionais como a Nuuvem e gaúcha SouKing. Com isto, desenvolvedores independentes puderam distribuir e vender seus jogos para todo o mundo, sem a necessidade de uma publisher.
Este cenário conectado é a base da outra transformação verificada. A popularização dos telefones celulares e suas lojas ampliou a base de jogadores, pois cada aparelho é um console em potencial. Junto dos tablets, formam um mercado que exige diferentes planos de negócios, mas de fácil desenvolvimento. A possibilidade de criar e publicar para uma vitrine mundial, reforçada com as várias ferramentas para criação, permite distribuir ideias cobrando depois (modelo freemium) ou por preços menores do que os jogos de computador e consoles.
Este cenário segue em constante evolução. O uso de realidade virtual, seja nos computadores ou smartphones, abriu uma nova fronteira, que segue em expansão. Desenvolvedores locais exploram esta possibilidade, dos jogos até aplicações educativas, fato que mostra que ainda existe muito jogo pela frente para os desenvolvedores brasileiros.